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A história dos surdos é marcada por lutas, resistências e, sobretudo, por um constante esforço em construir e afirmar uma identidade própria. Quando pensamos na história da educação dos surdos, o Congresso de Milão de 1880 é um ponto de referência quase inevitável. Ali, foi decidida a proibição do uso de línguas de sinais nas escolas, um evento que impactou profundamente a comunidade surda ao longo do tempo. Mas, o que aconteceu depois de Milão? Qual a narrativa oficial e quais as histórias que ficaram nas entrelinhas?
É importante refletir sobre a maneira como a narrativa oficial sobre Milão foi construída. Com o passar do tempo, tornou-se uma "verdade" que os surdos teriam sucumbido totalmente às decisões impostas naquele congresso. No entanto, precisamos revisitar e entender essas narrativas, podemos nos questionar: a quem essa "verdade" serve? Por que essa visão se consolidou, e o que ela deixa de lado?
A narrativa dominante muitas vezes silencia os protagonistas surdos do final do século XIX, figuras que, apesar de seus esforços e contribuições, não foram amplamente reconhecidas na história tradicional. Esses protagonistas lutaram contra a imposição de métodos de ensino puramente orais e defenderam com fervor o direito de usar suas línguas de sinais.
Ao revisitar esses eventos e documentos, percebemos que a história é mais complexa do que a narrativa simplista de uma derrota total em Milão. Os surdos daquele período não foram passivos; eles se organizaram, participaram de congressos, e expressaram suas vozes de várias maneiras. Por exemplo, no Congresso Internacional de Educação e Assistência aos Surdos-Mudos em Paris, em 1900, surdos e seus aliados apresentaram propostas e críticas que ressoam até hoje. Eles não apenas resistiram, mas também propuseram novas maneiras de entender a educação e o papel da linguagem de sinais.
O Congresso de Paris (1900): Um Marco na Educação de Surdos
Em agosto de 1900, durante a Exposição Universal de Paris, aconteceu um evento que mudaria a trajetória da educação de surdos no mundo: o Congresso Internacional para Estudos de Questões de Educação e Assistência de Surdos-Mudos - é importante destacar que essa perspectiva histórica ainda não é muito difundida.
O congresso foi dividido em duas seções separadas, uma para ouvintes e outra para surdos. Isso refletia as diferenças de pensamento e perspectiva entre os grupos, que acabaram tomando direções bem distintas durante o evento.
A seção de ouvintes, liderada pelo médico Ladreit de Lacharriére, focou na implementação do método oral, visando capacitar os surdos a se comunicarem através da fala, sem o uso da linguagem de sinais. O objetivo era prepará-los para ingressar no mercado de trabalho, baseando-se em diagnósticos médicos que buscavam identificar algum grau de audição residual nos surdos. Nesse contexto, o uso da linguagem gestual era visto com ceticismo, e a unificação linguística dentro de cada nação era defendida como um caminho para a inclusão.
Por outro lado, a seção dos surdos teve uma abordagem completamente diferente. Reorganizados após o polêmico Congresso de Milão, que havia banido o uso da língua de sinais nas escolas, os surdos presentes no evento em Paris levantaram a bandeira do retorno à linguagem gestual como ferramenta essencial para a educação. Eles defenderam que a educação dos surdos deveria levar em conta suas especificidades, permitindo que tivessem acesso a diferentes áreas de trabalho e que pudessem até se tornar professores. Quem foi o surdo que presidiu a seção dos surdos? Essa informação foi muito difícil de encontrar e graças a palestra disponivél no youtube da professora Drª. Lucyenne Matos da Costa Vieira-Machado conseguimos. Gravem este nome ERNEST DUSEZEAU (1846-1917) professor surdo foi o Presidente do Comitê de organização da seção dos surdos do Congresso de Paris (1900).
ERNEST DUSEZEAU (1846-1917) - Professor Surdo |
Apesar das divergências, ambos os grupos concordaram em um aspecto crucial: as instituições de educação de surdos deveriam deixar de ser controladas pelo Ministério do Interior, ligado a uma tradição caritativa e pastoral, e passar para a administração do Ministério da Educação, reforçando a ideia de que a educação era a melhor solução para a inclusão dos surdos na sociedade.
O Congresso de Paris de 1900, portanto, foi um momento de ruptura. Ele representou a transição de uma visão assistencialista para uma abordagem educacional que considerava as necessidades específicas dos surdos, abrindo caminho para uma educação mais inclusiva e digna.
Um dos pontos mais fascinantes é como as demandas e lutas daqueles surdos do século XIX ainda ecoam nas discussões contemporâneas. Em congressos mais recentes, como o Congresso Latino-Americano de Educação Bilíngue em 1999, encontramos reivindicações que, surpreendentemente, são muito semelhantes às de cem anos antes: o direito de aprender e ensinar em língua de sinais, o reconhecimento da importância de professores surdos, e a luta contra a exclusão e marginalização.
Esses exemplos mostram que a história dos surdos é uma história de continuidade e persistência. As lutas de ontem informam as lutas de hoje, e os desafios de hoje refletem a resistência de gerações passadas. Ao olhar para trás, podemos entender melhor como chegamos ao presente e o que ainda precisa ser feito para garantir uma educação verdadeiramente inclusiva e respeitosa para todos.
Ao revisitar a história da educação dos surdos, é essencial que não nos limitemos a aceitar as "verdades" estabelecidas, mas que também busquemos resgatar as vozes silenciadas ao longo do tempo. De acordo com Le Goff, a memória é um campo de disputa, onde diferentes grupos lutam pelo direito de se fazer ouvir e de ver suas experiências reconhecidas. Nesse contexto, a narrativa histórica tradicional pode ser vista como um "monumento", no sentido dado por Pierre Nora, onde a memória oficial se cristaliza, muitas vezes excluindo outras perspectivas. Assim, ao trazer à tona essas vozes marginalizadas, podemos construir uma memória coletiva mais ampla e justa, que reconheça o verdadeiro protagonismo dos surdos na história. Este é um compromisso necessário, tanto para honrar um passado plural quanto para moldar um futuro mais inclusivo.
Para mais informações acesse o artigo abaixo:
Referência: RODRIGUES, José Raimundo; VIEIRA-MACHADO, Lucyenne Matos da Costa; VIEIRA, Eliane Telles de Bruim. Congresso de Paris (1900): a seção de surdos e sua atualidade em relação à educação de surdos. Revista Brasileira de História da Educação, [S.L.], v. 20, n. 1, p. 1-25, 6 dez. 2019. Universidade Estadual de Maringa. http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v20.2020.e095. Acessado 13 de setembro de 2024
Temos também um vídeo da professora Profª. Drª. Lucyenne Matos da Costa Vieira-Machado (Universidade Federal do Espírito Santo – UFES) que traz a tona essa questão:
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